O título alude a um livro (The Past is a Foreign Country, David Lowenthal) que analisa a relação ambivalente que coletivamente mantemos com o passado. Veio-me à memória a propósito de uma pequena experiência sobre perceção histórica que tenho casualmente feito em conversas corriqueiras.
É um hábito lamentar a carestia da vida, dir-se-ia que faz parte da natureza humana. E como as dificuldades atuais são aquelas que presentemente mais nos doem, tendemos a desvalorizar as agruras pretéritas. No caso da sociedade portuguesa esse fenómeno natural tem vindo a ser intensificado por uma clara linha demarcadora da nossa história recente: a introdução do euro em 2002. Na crista da onda das conversas de café aquando da emergência da crise das dívidas soberanas surfavam memórias desse fatídico ano que corroboravam a calamidade que o euro trouxe à vida das pessoas: nomeadamente, uma taxa de inflação de 100% em vários produtos de consumo quotidiano. Como?, espantar-se-ia o leitor, 100?! Claro, responderia toda a gente em uníssono: então não se lembra de como o café (ou bica, consoante as geografias) passou de 50 escudos para 50 cêntimos de um dia para o outro? Assim, de mansinho, como quem não quer a coisa, e o povo nem bufou, porque naquela baralhação das conversões nem deu conta. E foi assim com muita coisa, principalmente ao nível da alimentação. Legumes, fruta, carne, deu tudo um salto tremendo, praticamente o dobro!
Esta conversa é familiar, já todos a ouvimos e normalmente concordamos: afinal todos nos lembramos perfeitamente que em 2001 um café custava 50 escudos. Aliás, isso até era caro. No cafezito de bairro até era a 30. E às vezes, nas terreolas do interior, ainda se apanhava um Segafredo bem tirado a 25. Uma daquelas moedecas bimetálicas com o Garcia da Orta no reverso dava para pagar pelo menos quatro cafés! Olha agora, com um euro nem dois cafézitos chincas!
Exceto que tudo isto é falso. Em 2001 o café não custava 50 escudos. E foi aqui, quando comecei a testar a memória que as pessoas tinham do tal disparo inflacionário que o euro supostamente causou, que comecei a descobrir coisas extraordinárias sobre a forma como as pessoas se relacionam com o passado, principalmente quando o passado envolve dinheiro.
Em 2001 eu andava bastante interessado em numismática, o que para mim acrescentou algum entusiamo à entrada em circulação daquelas moedinhas todas modernaças, mais pequenas e elegantes do que os nossos vetustos pires cheios de caravelas e esferas armilares. Como só colecionava moedas de escudo, estava também a assistir à transformação da colecção entretanto acumulada em peça de museu. Uns dias antes da entrada em circulação do euro, e antecipando as costumeiras alterações no preço do café que ocorriam com a entrada do novo ano, cogitava eu nestas coisas ao pagar um café (note-se que isto se passou em Mirandela, num café de bairro tendencialmente mais barato do que os cafés do centro da cidade). O meu raciocínio era mais ou menos o seguinte: o café custa hoje 85 escudos; vejamos se o actualizam para 42 cêntimos, como a taxa de conversão determina, ou se por conveniência o passam logo para 45 cêntimos. Claro que passou para 45 cêntimos, e não demorou muito tempo a passar para os 50. Mas mesmo assim estamos muito longe do disparo para o dobro que a memória colectiva hoje dolorosamente recorda.
Em conversa inevitavelmente apaixonada sobre o assunto quase toda a gente jura a pés juntos que eu estou errado, que o café custava mesmo 50 escudos antes da entrada do euro. Tenho ouvido pessoas que se recordam claramente de, no raiar da zona euro, pagar o café com uma nota de 50 escudos (na verdade essas notas saíram de circulação em 1987). Ou que, no hipermercado, uma família de quatro pessoas fazia as compras do mês com uma nota de dez contos. Coisas destas. E é difícil contrariar as pessoas, porque a blogosfera e os jornais estão cheios de artigos que reproduzem estas barbaridades, às vezes ditas por pessoas que deveriam saber do que estão a falar. Na busca de provas que não passassem apenas por bloggers que têm uma memória tão boa como a minha, acabei por encontrar algo um pouco mais sólido. Creio que um documento publicado no boletim económico do Banco de Portugal (página 10) chega para garantir, com gráficos explicativos e tudo, que não sonhei, que o preço do café não era de 50 escudos em 2001. Por uma questão de comodidade transcrevo aqui a parte relevante.
Da observação destes gráficos pode concluir-se, em primeiro lugar, que, para qualquer um destes quatro produtos, os preços “convenientes” em escudos dominaram a distribuição em Janeiro de 2001. Efectivamente as modas das distribuições dos preços destes produtos correspondiam então aos preços 80$00, 120$00, 1800$00 e 700$00, respectivamente para o café ao balcão, cerveja imperial ao balcão, refeição completa em restaurantes de 2ª e 3ª categoria e bilhetes de cinema. Em segundo lugar é visível que a frequência dos preços “convenientes” em escudos diminuiu ao longo do período em estudo, enquanto a dos “convenientes” em euros aumentou. Veja-se, por exemplo, o caso do café ao balcão, cujo preço de 90 escudos se tornou frequente a partir de Janeiro de 2002, sendo inclusivamente a moda em Março de 2002 (Gráfico 12). Verifica-se ainda que, neste último mês, começa a adquirir uma representatividade significativa o preço de 100 escudos, correspondente a 0.50 euros, que é um preço eventualmente mais “conveniente” do que 0.45 euros. Comportamento idêntico aos do preço do café ao balcão pode ser observado para o preço da cerveja imperial ao balcão (Gráfico 13).